Tudo branco, de uma alvura austera e significativa do aprumo, asseio, e do rigor que esta peça de vestuário deve investir naquele que a usar. O modelo utilizado para as esculturas é genericamente atribuído a uma postura masculina (mas não só) mais formal: a camisa branca com colarinhos brancos. Esta é a definição que o artista determino, para intitular esta série socorrendo-se, numa forma estrutural na sua prática artística, de uma expressão corrente, ou de um cliché, como o “colarinho branco”, que na definição do dicionário online Priberam, entre outras, pode ser entendida como uma característica de um “profissional que desempenha funções de gestão ou de administração, que não envolvem trabalho físico, e a quem se exige um certo grau de formalidade na indumentária”. Mais recentemente, o artista desenvolveu uma outra obra, uma escultura intitulada “Branco Sujo”, de 2016, com a mesma matriz formal e trabalhada sobre bronze fundido. O adjectivo “sujo” agregado à figura da camisa de colarinho branco sublinha um sentido crítico sobre o tema e as suas diversas correlações.
Em 2021 escrevi um texto sobre a sua obra, em múltiplos reproduzidos, “Produção Caseira” de 2020, no qual me refiro a uma outra peça, esta do ano anterior, intitulada “Vendo País para comprar casa”, em que é muito presente “um jogo crítico e satírico com os valores económicos”, reclamando desta forma uma postura reactiva, e uma chamada de atenção para o grau de injustiça e de desnivelamento social que de uma forma ou de outra todos vamos enfrentando, mas simultaneamente absorvemos como um dado adquirido que se inscreve no status quo do nosso quotidiano. Esta obra é composta por vinte e oito placas de mármore gravado em baixo relevo, como se se tratassem de pedras tumulares: em cada uma está escrita uma relação económica entre a propriedade horizontal e o valor de custo da estadia num hotel, bem como uma avaliação depreciada do custo do valor de uma hipoteca de uma casa. Estas referências são apenas algumas das pistas possíveis para enquadrar a prática artística de Isaque Pinheiro nos seus aspectos formais e conceptuais, que se reflectem na obra “A Malha”, exposta publicamente na fachada desta galeria. “A Malha” é uma obra composta, de grandes dimensões, produzida numa primeira fase num complexo industrial a partir de um molde executado pelo artista que recria o modelo da escultura, de 2008, intitulada “Colarinhos Brancos”, mas com uma diferença substancial: trata-se de uma série de esculturas individuais, finalizadas pela mão do artista, que se presentifica no exterior do edifício como um relevo arquitetónico que num primeiro vislumbre pode assemelhar-se a um painel modernista. Contudo, sob um olhar mais atento este painel é como uma sequência de figuras inscritas em cada elemento da instalação pontuado pela forma do colarinho branco, e essencialmente pela acção violenta que descarna a corporalidade de cada um desses elementos. Deste modo, “A Malha” é também uma estratégia da linguagem que o artista utiliza para, numa acção disruptiva, nos desajustar as certezas sobre aquilo que vemos e a forma como vemos.
Uma das características desta obra é ser marcada por uma diferença de textura e de volumetria que lhe atribui um determinado movimento, tendo em conta a grelha geometricamente rigorosa. Num primeiro momento, o título pode referir-se à malha da grelha ortogonal que desenha a montagem da instalação, e num segundo momento àquilo que não é imediatamente visível, a malha de ferro que foi descoberta após cada escultura ter sido picada a martelo, descarnando, como já referi, a estrutura interna de cada uma das peças. Nesta acção física, Pinheiro concebe uma relação entre o gesto e a palavra que não só descreve o gesto enquanto processo e resultado, mas também inscreve a polissemia do vocábulo e a sua condição de possibilidade enquanto processo linguístico. Deste modo, o artista desenvolve uma diferenciação sobre a observação formal da obra que é, parcialmente, uma observação factual e objectiva sobre a construção deste trabalho através de uma designação: a malha. Contudo, esta obra reactiva num segundo plano uma assunção crítica que não é reconhecível imediatamente, relacionando cada uma das figuras do colarinho branco com um índex de processos judiciais, disponíveis publicamente para consulta sob requerimento. Ou seja, cada um dos elementos escultóricos está associado a um número ou à designação descritiva que identifica cada um dos processos elencados. Esta listagem só pode ser consultada em conjunto com a lista de obras que compõem a totalidade da instalação.
Regressemos à obra “Colarinhos Brancos”, de 2008, para compreendermos um correlato de relações que são desenvolvidas de uma forma mais coerente na obra “A Malha” na sua complexidade crítica, política, e em diversas formas genéricas que são vulgarmente incorporadas no senso comum, como o crime de colarinho branco, e na especialidade da linguagem jurídica, como por exemplo na seguinte definição, entre muitas outras possíveis: “O conceito de white-collar crime obteve notoriedade com a obra de Sutherland, no final dos anos trinta do nosso século. Todavia, muito antes disso, os ricos e poderosos já praticavam condutas criminosas, mas a percepção destes comportamentos seria secundária, pois a visão dominante atribuía a criminalidade à pobreza e aos demais factores conexos a esta condição financeira desfavorável”.
Este projecto de Isaque Pinheiro revela uma continuada inquietação sobre questões sociais e materiais da sociedade em que vivemos e que têm marcado o seu trabalho, nomeadamente no retorno às obras de grande escala e de relação com o espaço público, mas também com o uso da linguagem, e de outros dispositivos semânticos e estatísticos. Por outro lado, a instalação na fachada da galeria coloca-nos perante uma posição ambígua e paradoxal, no sentido em que cada uma destas esculturas remete para a presença de um corpo, exacerbando a exposição pública da figura simbólica do colarinho branco, que, podendo não ser imediatamente associada a uma conduta social duvidosa, reside simbolicamente na memória colectiva. Neste aspecto, Pinheiro estabelece um duplo jogo, entre a sátira e a crítica, contrapondo algumas convenções sociais muitas vezes generalistas e estribadas na falsidade, no preconceito e na ignorância ou, pelo contrário, nos delitos muitas vezes sujeitos a uma lógica aparentemente difamatória em que a prova material é de difícil confirmação, e deste modo quase invisível, tal como a listagem associada à instalação da fachada, mas sujeita a uma solicitação específica para ser consultada.
Na obra de Isaque Pinheiro a linguagem é uma ferramenta essencial em termos do uso da metáfora, ou mesmo da hipérbole, enquanto figura de estilo associada a uma forma e a uma transcrição da realidade, nem sempre imediatamente apreensível.