Criada com apenas 19 anos, quando ainda era estudante do liceu, a obra revela-nos um artista influenciado pela pop arte e pelos movimentos psicadélicos dos anos 60, mas comprometido com os problemas do seu tempo e que já usava a arte para articular as suas preocupações sociopolíticas, um aspecto essencial da sua carreira – o entendimento de que a sua prática não está separada do que acontece ao seu redor: “Não sou um artista político, mas o que acontece à minha volta, na minha vizinhança, no meu país, na minha região, é importante e eu capto esses aspetos e incorporo-os.”[2]
Sobre o Consumo da Pílula é uma obra com diversas camadas, que envolve o espectador em diferentes escalas. Uma forma de abordá-la é em relação à revolução feminista e ao debate sobre direitos sexuais. Com ironia e sarcasmo, a obra responde diretamente ao posicionamento da Igreja Católica sobre o uso de anticoncecionais. Em “Feminism for Everybody” , bell hooks destaca a importância da autonomia sobre o corpo como ponto de partida para a liberdade – a liberdade sexual feminina requer um controlo de natalidade confiável e seguro, sem o qual as mulheres não podem exercer controlo total sobre o resultado da atividade sexual[3]. O lançamento das pílulas anticoncecionais (adequadas, mas nem sempre seguras) na década de sessenta tornou-se um marco na história da liberdade e da sexualidade das mulheres, colocando as mulheres no controlo dos seus corpos e taxas de natalidade e abrindo caminho à libertação das mulheres. Em 1968, o Papa Paulo VI publicou uma encíclica, declarando os anticoncecionais artificiais imorais.
Longe de ser unânime, o documento intitulado “humane vitae” (da vida humana) gerou polémica entre católicos e não católicos, que esperavam que a Igreja assumisse uma posição mais permissiva no controlo da natalidade.
António Ole assume um posicionamento ético e político na luta anti-sexista no contexto de uma sociedade conservadora – Luanda[4], no final do período colonial. Por um lado, a sua obra não pode ser isolada de um contexto e de novas produções e linguagens artísticas, surgidas em diversos países africanos, no período entre o pós-independência e o eclodir das guerras civis que, segundo Alfons Hugs, anuncia novos paradigmas para a produção artística africana, com forte apelo social e uma reflexão sobre a condição humana[5]. Por outro lado, é interessante perceber que a abordagem da temática ligada aos direitos das mulheres se enquadra, não só neste amplo movimento, como também é contemporânea do início dos movimentos artísticos feministas da década de 70.
Exibida pela primeira vez em 1970, no IV Salão de Arte Moderna de Luanda[6], a obra foi premiada e paradoxalmente considerada blasfema pelo Movimento Nacional Feminino[7], censurada da exposição, voltando a ser exposta publicamente apenas no ano seguinte, no mesmo Salão.
Se por um lado há uma referência direta ao debate sobre os direitos reprodutivos, por outro lado, há uma ambiguidade nas figuras, que abre espaço a uma reflexão mais ampla sobre as estruturas de poder e todos os tipos de dominação – as figuras parecem sofrer uma overdose ou querer libertar-se da religião e dos sistemas políticos, a luta pela sobrevivência e uma subtil menção à loucura da guerra e aos dilemas e contradições da vida moderna, abordada no romance de Heller, um grito ou vómito do catolicismo e do nazismo – a discussão à volta dos direitos das mulheres não pode ser dissociada do debate sobre os direitos e liberdades humanos. Sobre o consumo da pílula assume-se como uma obra política sem, no entanto, ser panfletária.
Cinquenta anos depois da sua primeira exibição, o debate sobre contracetivos artificiais e liberdade sexual avançou e ramificou-se em diferentes direções. Sobre o consumo da pílula funciona como um memorial dos acontecimentos da época e que não devemos negligenciar – e convida-nos a refletir sobre a história dos direitos reprodutivos, autonomia e liberdade das mulheres e em como essa jornada está longe de terminar.
[1] Adriano, Mixinge, “A estética da pobreza e a travessia”, p. 184/190 in Made in Angola, L’harmattan Paris
[2] Ole em Entrevista a Barbara Murray, 1998
[3] Bell hooks, “Feminism for Everybody”, 2000, Pluto Press
[4] Luanda, capital de Angola – país que alcançou a independência de Portugal em Novembro de 1974
[5] Alfons Hugs, “Antonio Ole and the New Objet Trouvé in Africa,” p. 95 in Dak’Art 1998: Catálogo de Exposição.
[6] Salão de Arte Moderna de Luanda – exposições de arte em Luanda. De acordo com Rodrigues Vaz, o primeiro salão foi organizado em 1967, pela Câmara Municipal de Luanda, em colaboração com a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa e o Núcleo de Artes de Lourenço Marques (atual Maputo), de acordo com cânones e exigências europeias.
[7] O Movimento Nacional Feminino (MNF – 1961-1974) foi uma organização de apoio ao Estado Novo, apoiada por António de Oliveira Salazar e centrada na organização das mulheres em torno do apoio à Guerra Colonial, em particular aos conflitos em Angola, Moçambique e Guiné. A Organização nunca desempenhou qualquer papel na reivindicação de mudanças no papel da mulher na sociedade.