Em diálogo com…

Em diálogo com…

apresentação

A .insofar apresenta o projeto artístico mais recente de António Ole “Em diálogo com…, o qual constitui uma série de serigrafias, que se baseiam numa das suas obras emblemáticas dos anos 70 “Sobre o Consumo da Pílula”, acompanhado no verso de um ensaio da curadora Paula Nascimento.

Uma edição limitada de serigrafia manual de 28 edições e 3 provas de autor: que correspondem aos 28 dias que usualmente as mulheres tomam a pílula e os 3 dias de descanso.

“Sobre o Consumo da Pílula é uma obra com diversas camadas, que envolve o espectador em diferentes escalas. Uma forma de abordá-la é em relação à revolução feminista e ao debate sobre direitos sexuais. Com ironia e sarcasmo, a obra responde diretamente ao posicionamento da Igreja Católica sobre o uso de anticoncepcionais. Em “Feminism for Everybody”, bell hooks destaca a importância da autonomia sobre o corpo como ponto de partida para a liberdade – a liberdade sexual feminina requer um controlo de natalidade confiável e seguro, sem o qual as mulheres não podem exercer controlo total sobre o resultado da atividade sexual”

– extrato do ensaio de Paula Nascimento

Lado A

Lado B

ensaio

Sobre o Consumo da Pílula
ensaio de Paula Nascimento, 2022

Uma matriz de 20 quadrados que lembra uma prancha de banda desenhada. Uma composição que se assemelha a um jogo ótico, entre pormenores, figuras com forte e indecifrável expressão, símbolos de poder como uma cruz suástica e a cruz católica, sendo vomitadas. Ferragens, setas diagramáticas que parecem saídas de um manual de instruções, distorcidas, sugerem movimento.

Uma máscara de gás com o número 22 referencia o modelo máscara mf22 ou a obra Catch 22, escrita em 1961 por Joseph Heller. A construção e composição da matriz remetem à estrutura do livro, composta por histórias independentes, sem sequência ou ordem cronológica com os acontecimentos descritos a partir de diversos pontos de vista e uma linha do tempo que envolve o enredo. Apesar de ser influenciada pelas histórias de banda desenhada, a composição da obra é fragmentada. O Papa Paulo VI consome ou é consumido por uma pílula (anticoncepcional).

Um cenário distópico e psicadélico.

Sobre o Consumo da Pílula marca o início da carreira artística de António Ole. Nascido em Luanda, em 1951, o artista tem desenvolvido, ao longo dos últimos 50 anos, uma carreira que atravessou diversas fases – passando pela fotografia, pintura, vídeo, instalação, entre outros. Artista cosmopolita e internacional, “fez de Angola o seu território real e simbólico”[1] – o ponto a partir do qual olha para o mundo e constrói o seu discurso.

Criada com apenas 19 anos, quando ainda era estudante do liceu, a obra revela-nos um artista influenciado pela pop arte e pelos movimentos psicadélicos dos anos 60, mas comprometido com os problemas do seu tempo e que já usava a arte para articular as suas preocupações sociopolíticas, um aspecto essencial da sua carreira – o entendimento de que a sua prática não está separada do que acontece ao seu redor: “Não sou um artista político, mas o que acontece à minha volta, na minha vizinhança, no meu país, na minha região, é importante e eu capto esses aspetos e incorporo-os.”[2]

Sobre o Consumo da Pílula é uma obra com diversas camadas, que envolve o espectador em diferentes escalas. Uma forma de abordá-la é em relação à revolução feminista e ao debate sobre direitos sexuais. Com ironia e sarcasmo, a obra responde diretamente ao posicionamento da Igreja Católica sobre o uso de anticoncecionais. Em “Feminism for Everybody” , bell hooks destaca a importância da autonomia sobre o corpo como ponto de partida para a liberdade – a liberdade sexual feminina requer um controlo de natalidade confiável e seguro, sem o qual as mulheres não podem exercer controlo total sobre o resultado da atividade sexual[3]. O lançamento das pílulas anticoncecionais (adequadas, mas nem sempre seguras) na década de sessenta tornou-se um marco na história da liberdade e da sexualidade das mulheres, colocando as mulheres no controlo dos seus corpos e taxas de natalidade e abrindo caminho à libertação das mulheres. Em 1968, o Papa Paulo VI publicou uma encíclica, declarando os anticoncecionais artificiais imorais.

Longe de ser unânime, o documento intitulado “humane vitae” (da vida humana) gerou polémica entre católicos e não católicos, que esperavam que a Igreja assumisse uma posição mais permissiva no controlo da natalidade.

António Ole assume um posicionamento ético e político na luta anti-sexista no contexto de uma sociedade conservadora – Luanda[4], no final do período colonial. Por um lado, a sua obra não pode ser isolada de um contexto e de novas produções e linguagens artísticas, surgidas em diversos países africanos, no período entre o pós-independência e o eclodir das guerras civis que, segundo Alfons Hugs, anuncia novos paradigmas para a produção artística africana, com forte apelo social e uma reflexão sobre a condição humana[5]. Por outro lado, é interessante perceber que a abordagem da temática ligada aos direitos das mulheres se enquadra, não só neste amplo movimento, como também é contemporânea do início dos movimentos artísticos feministas da década de 70.

Exibida pela primeira vez em 1970, no IV Salão de Arte Moderna de Luanda[6], a obra foi premiada e paradoxalmente considerada blasfema pelo Movimento Nacional Feminino[7], censurada da exposição, voltando a ser exposta publicamente apenas no ano seguinte, no mesmo Salão.

Se por um lado há uma referência direta ao debate sobre os direitos reprodutivos, por outro lado, há uma ambiguidade nas figuras, que abre espaço a uma reflexão mais ampla sobre as estruturas de poder e todos os tipos de dominação – as figuras parecem sofrer uma overdose ou querer libertar-se da religião e dos sistemas políticos, a luta pela sobrevivência e uma subtil menção à loucura da guerra e aos dilemas e contradições da vida moderna, abordada no romance de Heller, um grito ou vómito do catolicismo e do nazismo – a discussão à volta dos direitos das mulheres não pode ser dissociada do debate sobre os direitos e liberdades humanos. Sobre o consumo da pílula assume-se como uma obra política sem, no entanto, ser panfletária.

Cinquenta anos depois da sua primeira exibição, o debate sobre contracetivos artificiais e liberdade sexual avançou e ramificou-se em diferentes direções. Sobre o consumo da pílula funciona como um memorial dos acontecimentos da época e que não devemos negligenciar – e convida-nos a refletir sobre a história dos direitos reprodutivos, autonomia e liberdade das mulheres e em como essa jornada está longe de terminar.


[1] Adriano, Mixinge, “A estética da pobreza e a travessia”, p. 184/190 in Made in Angola, L’harmattan Paris
[2] Ole em Entrevista a Barbara Murray, 1998
[3] Bell hooks, “Feminism for Everybody”, 2000, Pluto Press
[4] Luanda, capital de Angola – país que alcançou a independência de Portugal em Novembro de 1974
[5] Alfons Hugs, “Antonio Ole and the New Objet Trouvé in Africa,” p. 95 in Dak’Art 1998: Catálogo de Exposição.
[6] Salão de Arte Moderna de Luanda – exposições de arte em Luanda. De acordo com Rodrigues Vaz, o primeiro salão foi organizado em 1967, pela Câmara Municipal de Luanda, em colaboração com a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa e o Núcleo de Artes de Lourenço Marques (atual Maputo), de acordo com cânones e exigências europeias.
[7] O Movimento Nacional Feminino (MNF – 1961-1974) foi uma organização de apoio ao Estado Novo, apoiada por António de Oliveira Salazar e centrada na organização das mulheres em torno do apoio à Guerra Colonial, em particular aos conflitos em Angola, Moçambique e Guiné. A Organização nunca desempenhou qualquer papel na reivindicação de mudanças no papel da mulher na sociedade.

ler mais ler menos
sobre o artista

António Ole (Angolano,  1951)

António Ole é uma das principais figuras da história dos desenvolvimentos artísticos em Angola e uma das mais ativas no panorama internacional da arte contemporânea entre os artistas africanos de língua portuguesa. O seu rico e diversificado universo visual está ligado à vívida intersecção da observação direta, da memória histórica, de referências de longo alcance e de questões contemporâneas prementes como a pobreza, a desigualdade, a migração, a corrupção e o desenvolvimento insustentável. O seu ambiente cultural e natural imediato são fontes contínuas de inspiração. Ao longo da sua obra, o artista presta frequentemente homenagem à simples beleza e criatividade espontânea que prosperam entre a população angolana e que se nota em todos os aspetos do quotidiano das pessoas. A sua inventividade multimédia vai desde cinema, vídeo e fotografia até desenhos, colagem, pintura, escultura e instalação monumental. Apesar do seu profundo compromisso em confrontar a realidade e em desencadear mudanças sociais e políticas através dos seus resultados artísticos, a obra de Ole é infundida com poesia e uma notável dimensão oneérica. Assim, o artista evoca um mundo sensível e imaginativo, que abre a porta a potenciais de ficção e estratos de perceção.

mais sobre o artista   Bio | CV

Thank you

You have been added to our mailing list.
 

Send an inquire

Em diálogo com…