“e… o lixo vai?!”

“e… o lixo vai?!”

síntese

05 Novembro – 17 Dezembro 2022

“e… o lixo vai?!”
António Ole
Curadoria Inês Valle


Um artista do seu tempo, but always looking forward!

por Inês Valle, 2022

Enquanto caminho, escrevo as palavras de um percurso maior do que o meu. O trajeto de um artista que se estende por mais de 50 anos e que tem vindo a ser revelado nas camadas íntimas da sua arte em questões complexas de pessoas, em histórias e em lutas de sociedades mutantes. António Ole, de Caluanda, tornou-se um dos artistas conceptuais mais reconhecidos da história recente de Angola, motivando um forte repensar da arte contemporânea no continente africano.

Numa sucinta contextualização do panorama em que a obra de António Ole se desenvolve, é importante referenciar alguns momentos sociais, culturais e políticos que se iniciaram no século vinte e que tiveram fortes repercussões em África. O primeiro movimento pela valorização da Cultura Negra surgiu nos EUA com o Harlem Renaissance (1918), que tinha um forte envolvimento em organizações ligadas aos direitos civis e de reforma, seguido por outros como o Pan-Africanismo, Pan-Arabismo, o Black Arts Movement, o Black Panther Party, o Black Feminism, ou mesmo o controverso afro-franco-caribenho movimento Negritude, que muito contribuíram para as noções de representação e definição da identidade negra. Um efervescente período de mudança, que Angela Davis assim descreveu: “I wanna be there. This is earth-shaking. This is change. I wanna be a part of that” 1. Estes ideais, como seria previsível, também se refletiram no campo das artes, com eventos de valorização da cultura africana e da sua diáspora, com os primeiros festivais: o FESMAN (Festival Mondial des Arts Nègres, Dakar, 1966) e o FESTAC (Second World Black and African Festival of Arts and Culture, Lagos, 1977).
O último, tomou como seu emblema a famosa máscara da rainha Idia recriada por Erhabor Emokpae, um dos pioneiros da arte moderna na Nigéria2.

A FESTAC, que António Ole documentou num dos seus filmes, contou com a presença de mais de 17.000 participantes de 50 países e foi considerado, até aquela data, como o maior evento cultural alguma vez realizado no continente africano. Todavia, Angola e Portugal, viveram durante décadas num fosso de isolamento e somente depois do 25 de Abril de 1974, é que progressivamente tomaram consciência da nova situação mundial – em Angola, a liberdade e o distanciamento dos valores impostos pelo colonialismo, era imperativo. Muito mais tarde, abre em 1989, a polémica exposição de arte contemporânea Magiciens de la Terre no Georges Pompidou e no Grande halle de la Villette, abala a estrutura da história da arte eurocêntrica. Uma exposição colectiva, onde 50% dos artistas eram “não ocidentais” e alguns sem a educação dita formal, hoje em dia, alguns destes são hoje uma referência na História da Arte Contemporânea como Chéri Samba, Twins Seven Seven e Esther Mahlangu.

É num cenário impregnado de estímulos políticos e culturais, que António Ole testemunha um país em conflito por mais de três décadas, desde a luta da nação pela sua descolonização, passando por uma fase de consolidação da independência até um atenuar com o fim da Guerra Civil em 2002. Apesar das adversidades de um país instável que até à sua independência teve uma das taxas de analfabetismo mais elevadas do mundo na ordem dos 85% (3). Ole tem o privilégio de ter acesso à educação e posteriormente de viajar. Tendo acesso às doutrinas marxistas e lendo também os livros proibidos pelo regime ditatorial, angariou uma visão ampla que lhe permitiu alargar experiências em geografias e mentalidades díspares, que o potenciam a desenvolver uma capacidade crítica e repensar noções estabelecidas de Portugal, Angola, África e do mundo. No leito destas vozes em que já ecoavam desejos de mudança, apresenta no início da sua carreira obras de carácter irónico e sarcástico que expunham temas sócio-políticos de forte crítica à sociedade da época. No entanto, a ambiguidade nem sempre foi bem recebida e algumas das suas obras foram censuradas e proibidas de serem exibidas. Como sucedeu com Sobre o Consumo da Pílula, obra apresentada e premiada no IV Salão de Arte Moderna de Luanda em 1970, é produzida quando o artista tinha apenas dezanove anos – uma obra com fortes influências do movimento da Pop Art e da Banda Desenhada que foi proibida pelo Movimento Nacional Feminino que pressionou o governador-geral da colónia a proibir a sua exibição, por retratar o Papa Paulo VI (1897–1978) a tomar a pílula (obra número 8 em exposição). Do mesmo modo, o documentário de longa-metragem sobre o grupo musical envolvido na luta clandestina anti-colonial O Ritmo do N’Gola Ritmos (1978) ficou “suspenso” durante onze anos, porque nele se referia o papel de Liceu Vieira Dias, um simpatizante da ‘Revolta Activa’ do MPLA. No entanto, e apesar de Ole assumir numa entrevista no Zimbabué com Barbara Murray que a sua obra nos anos 70 tinha um caráter mais político, ele expressamente recusa-se a enveredar pela política na arte (4). António Ole sempre se fez aprimorar pela sua integridade e necessidade de chamar a liberdade a si, rejeitando cargos políticos ou benefícios de quaisquer regimes ou caciques. É assim um humanista, independente de que a sua obra é testemunha.

A indagação e… o lixo vai?! que dá o título a esta sua exposição individual na galeria .insofar, denuncia exatamente esta liberdade criativa. Se, por um lado, se alude a uma das expressões que recorrentemente ouvia das pessoas que perplexas o observavam a recolher “lixo” ou a criar obras apartir dele; por outro lado, refere-se à multiplicidade de materiais descartados pela cidade, que usa, como chapas de ferro usadas e enferrujadas, ossos, conchas, salitre, terra encarnada, madeiras devoradas por vermes e até mesmo pedaços de tintas descascadas das paredes – utilizadas como materiais “metafóricos” que abordam temas sobre memórias reais da guerra, pobreza, escravatura, destruição, que são a luta diária do povo angolano que sempre centrou a sua prática (5), como é perceptível nesta exposição.

Faço referência a (un)Discardable Memories, desenvolvida durante o período do projeto Hidden Pages, Stolen Bodies em que se debruça sobre o tema da escravatura e do trabalho forçado associado à violência colonial que transforma os corpos dos sujeitos escravizados num bem vendável: são vidas e corpos roubados (6). Uma instalação composta por sacos de serapilheira usados e uma linha de esculturas, feitas por pratos de metal corroídos pela ferrugem que se sustentam periclitantemente como troféus numa prateleira de madeira. Estimulando um repensar do tempo através de um olhar inverso, metaforicamente aludindo à longa e precária história dos angolanos, impotentes de reivindicarem as suas liberdades. Já o Mural do Maculusso que tira o nome do seu bairro na cidade de Luanda, que surge como um musseque durante período da colonização portuguesa e que hoje é um dos epicentros da cidade. Um lugar que, tal como a obra, aglomera as marcas do tempo, numa espécie de patchwork das suas diferentes fases artísticas – em que, num reciclar, sobrepor e rebuscar, surge uma enorme colagem (composta por tecidos, recortes de jornais, revistas e cartazes, fotografias da cidade até mesmo referências a obras suas anteriores, como o retrato a preto e branco de uma mulher na sua série Mens Momentanea (I) de 1973).

Nesta espécie de cartografia dos lugares que habita e que o influenciam a comunicar os seus pensamentos no tempo e no espaço, Ole, põe “as coisas umas contra as outras” construindo paulatinamente um arquivo sócio-cultural de interligações inigualável. A título de exemplo, no tríptico Urban Choices II, capta cenas do quotidiano em Luanda, no Mercado de S. Paulo, onde se refere à vida numa cidade africana contemporânea, representada por objetos de rituais urbanos e religiosos empilhados em torre ou categoricamente alinhados numa miscigenação de díspares objectos utilitários por cor, forma ou função, como encontrarmos na banca de um mercado informal. Num outro mercado também em Luanda, adquire uma escultura tradicional de madeira com que cria a obra o Corpo Fechado – que Ana Balona Oliveira descreve como uma escultura que transporta a invocação protectora para a contemporaneidade, fechando-se às energias da guerra, da doença, da cobiça, da inveja, da corrupção e do mau olhado7, evidenciando tanto a sua sensibilidade espiritual como conhecimento etnográfico e tradicional da cultura angolana e africana.

O seu gosto pelas realidades marginais e marginalizadas, pelos restos de uma sociedade em construção (…) atiram-no para o retrato de um estudo dos heróis de um quotidiano esquecido, para o mapeamento de construções inverosímeis, para o indagar de um sofrimento coletivo tantas vezes silenciado em nome de um apagamento da memória como catarse possível (8), como Miguel von Hafe Perez, o caracteriza . Assim, dentro da sua vasta e eclética obra – pintura, escultura, colagem, desenho, instalação, fotografia e cinema – aquela que António Ole considera como uma das suas obras de arte mais importantes, uma vez que se trata de um símbolo do seu desenvolvimento artístico, combinando objetos encontrados e cores brilhantes, num estilo pop art (9) é a série das township walls, desenvolvida entre 1994 e 2004. Uma série, constituída por várias instalações, onde se debruça sobre a arquitetura e a vivência nos musseques de Luanda – esses bairros da lata africanos transbordantes de gente e vitalidade na periferia da cidade do cimento tão caros a António Ole (10), como descreve José Fernandes Dias em 1995. Nesta exposição foi incluída a emblemática – Township Wall X, concebida para a exposição itinerante Africa Remix – Contemporary Art of a Continent (2004) com curadoria de Simon Njami (11), e que posteriormente foi incluída na sua retrospectiva António Ole: Luanda, Los Angeles, Lisboa (2016) na Fundação Calouste Gulbenkian, com co-curadoria de Isabel Carlos e Rita Fabiana.

Hoje, prolonga-se por mais de nove metros numa das paredes da .insofar.

Esta presença de paredes ou vestígios destas, é também incorporada noutras séries, como quando poeticamente trabalha com as cascas de tinta que revestiam os edifícios em Luanda. Tal como sucede na obra Quick drawing III onde lembro as palavras de Delfim Sardo: paredes que são peles que guardam nas suas rugas a memória de tudo o que acontece a uma cidade12. Estas peles que se prolongam na poética da arqueologia urbana, levam-nos para cada pormenor revelado na sua obra que se apropria do quotidiano pessoal e coletivo.

A pintura Desintegrações I é um também um forte exemplo. Produzida nos fim da Guerra Civil em Angola e acarretando as memórias de um dos edifícios mais emblemáticos da cultura da sua cidade – o Teatro Elinga, um edifício que mais simboliza um modo de ser e de estar em Luanda… paredes [onde] se respira o tempo (13) reflete Marta Lança, numa das inúmeras ameaças de destruição deste monumento nacional. Assim, através da reutilização de um toldo de publicidade exterior deste teatro, que aos pedaços caía de degradado, António Ole, cria uma obra onde corta, pinta e transforma a memória do tempo, e que, como num presságio, anuncia o fim ou início de uma era.

Não só de cidade vive a obra de António Ole. O mar, a água, o campo, a terra e o imatérico, também lhe vagueiam na alma. Caminhando com frequência pelos areais da ilha de Mussulo, onde recolhe objetos que o oceano lhe presenteava, deixando-se imbuir nas vastas paisagens de horizontes luminosos. As pinturas A Ténue Luz do Ouro e O Poder da Água e das Partículas Sensíveis separadas por trinta anos, poderiam de alguma forma interligar-se, através da liquidez das suas formas que compõem cenários oníricos. Enquanto que a primeira nos transporta para um mundo espiritual, mitológico ou ancestral, onde figuras humanóides e animais esvoaçam pelas transparências da luz. Na segunda, num painel de cinquenta aguarelas, afiguram-se paisagens de céus e mares. Talvez memórias líquidas das inúmeras viagens que fez entre as ilhas de África: Ilha de Mussulo, Cabo Verde, Gorée, São Tomé, Robben Island, Ilha de Moçambique, Zanzibar, Lamu e Reunião. Obras que testemunham o seu interesse pessoal pela espiritualidade, em assuntos profundos e que lentamente estão a desvanecer-se das sociedades africanas, especialmente nos centros urbanos onde a violência de influências externas, tece outros valores.

Numa outra obra desta exposição, Ole, aborda problemáticas ambientais e económicas atuais, usando elementos do mundo natural para nos alertar sobre perdas irreparáveis em prol de um progresso económico. Refiro-me ao Boi Sagrado I – à memória de Ruy Duarte de Carvalho, uma obra que incorpora múltiplos significados. Tomando como base a memória do filme Ondyelwa: Festa do Boi Sagrado (1978) realizado pelo seu grande amigo antropólogo, que capta no seu documentário a procissão do boi sagrado – um ritual praticado entre os Nyaneka-Humbe.

Se por um lado António Ole nos alerta para as alterações climáticas que se têm vindo a agravar criando ciclos de seca mais prolongados (14) e com consequências drásticas para todo o ecossistema, com a secagem de rios, extinção de vida selvagem, migrações forçadas, perda de biodiversidade ou mesmo a erosão dos solos, apontando o caso particular no Namibe, em que, apesar do governo angolano em 2016 ter adoptado medidas para mitigar os efeitos da seca, mais de um milhão de angolanos continuam a ser afectados e se ainda associarmos estes factos a uma exploração petrolífera a expandir-se pelo território numa economia atípica, como é a de Angola onde o petróleo representa 70% da sua receita (15), por outro lado, o artista, desafia-nos a uma reflexão sobre as economias alternativas para o seu país, nomeadamente através da agricultura e criação bovina, como forma simultânea de perpetuar não só o ecossistema natural, mas também valorizar a identidade, sabedoria, cultura e independência económica local.

Talvez a cabeça de boi revestida a folha de ouro, que nos olha do topo da cartografia do rio Cunene no Namibe, nos faça ponderar sobre o equilíbrio entre tradição e progresso.

Por fim, a vitrina.


Uma arqueologia de memórias nunca apresentadas publicamente, do longo e eclético percurso de António Ole num desvendar simples de objetos impregnados de histórias, documentos preambulares, cadernos de bolso preenchidos por desenhos e pensamentos, esquiços de telas sobre papel vegetal, a sua máquina de escrever Oliva 2002, guiões de filmes, películas e bobinas de áudio, o seu avental de atelier impregnados com grossas camadas de tinta, bem como, diversos recortes de jornais com críticas e entrevistas, fotografias antigas do anos em que viajou a documentar o seu país que foram, categoricamente guardadas. Estas fotografias captadas por António Ole, são registos das cenas de gravação dos seus quatro filmes emblemáticos – Conceição Tchiambula, um dia, uma vida (1982); O Ritmo do N’Gola Ritmos (1970); O Caminho das Estrelas (1980) e o Carnaval da Vitória (1978), período em que também trabalhou para a TPA (Televisão Popular Angolana) a documentar o país. Na opinião de António Ole, tal como de outros cineastas Africanos, nomeadamente Paulin S. Vieyra, que afirma que este período foi crucial, dado que a nossa história, nunca ninguém no-la ensinou na escola, conhecemo-la apenas por ouvir dizer, pelas lendas, pelos contadores, e ela é fundamental para regressarmos às origens 16 e se não filmássemos [Angola] eu acho que a memória desse período se teria perdido (17). Deste modo, a importância destes filmes vai muito além de mostrar a transformação política e social do continente africano. Eles oferecem uma visão refundada do olhar estereotipado que [ainda] permanece sobre África. Tal como Wole Soyinka alerta-nos no seu livro de ensaios Myth, Literature and the African World de 1975, num mundo tão abrangente de mitos, histórias e costumes; o mundo africano, tal como qualquer outro “mundo”, é único.

Esta exposição pode contribuir para um entendimento mais amplo da obra do mestre António Ole que, profunda e provocadoramente nos estremece por dentro, de tão honesta que é.

Enquanto caminho, escrevo as palavras de um percurso maior do que o meu. O trajeto de um artista que se estende por mais de 50 anos e que tem vindo a ser revelado nas camadas íntimas da sua arte em questões complexas de pessoas, em histórias e em lutas de sociedades mutantes. António Ole, de Caluanda, tornou-se um dos artistas conceptuais maise Angela Davis assim descreveu: “I wanna be there. This is earth-shaking. This is change. I wanna be a part of that” (1). Estes ideais, como seria previsível, também se refletiram no campo das artes, com eventos de valorização da cultura africana e da sua diáspora, com os primeiros festivais: o FESMAN (Festival Mondial des Arts Nègres, Dakar, 1966) e o FESTAC (Second World Black and African Festival of Arts and Culture, Lagos, 1977).
O último, tomou como seu emblema a famosa máscara da rainha Idia recriada por Erhabor Emokpae, um dos pioneiros da arte moderna na Nigéria (2).

A FESTAC, que António Ole documentou num dos seus filmes, contou com a presença de mais de 17.000 participantes de 50 países e foi considerado, até aquela data, como o maior evento cultural alguma vez realizado no continente africano. Todavia, Angola e Portugal, viveram durante décadas num fosso de isolamento e somente depois do 25 de Abril de 1974, é que progressivamente tomaram consciência da nova situação mundial – em Angola, a liberdade e o distanciamento dos valores impostos pelo colonialismo, era imperativo. Muito mais tarde, abre em 1989, a polémica exposição de arte contemporânea Magiciens de la Terre no Georges Pompidou e no Grande halle de la Villette, abala a estrutura da história da arte eurocêntrica. Uma exposição colectiva, onde 50% dos artistas eram “não ocidentais” e alguns sem a educação dita formal, hoje em dia, alguns destes são hoje uma referência na História da Arte Contemporânea como Chéri Samba, Twins Seven Seven e Esther Mahlangu.

É num cenário impregnado de estímulos políticos e culturais, que António Ole testemunha um país em conflito por mais de três décadas, desde a luta da nação pela sua descolonização, passando por uma fase de consolidação da independência até um atenuar com o fim da Guerra Civil em 2002. Apesar das adversidades de um país instável que até à sua independência teve uma das taxas de analfabetismo mais elevadas do mundo na ordem dos 85%3. Ole tem o privilégio de ter acesso à educação e posteriormente de viajar. Tendo acesso às doutrinas marxistas e lendo também os livros proibidos pelo regime ditatorial, angariou uma visão ampla que lhe permitiu alargar experiências em geografias e mentalidades díspares, que o potenciam a desenvolver uma capacidade crítica e repensar noções estabelecidas de Portugal, Angola, África e do mundo. No leito destas vozes em que já ecoavam desejos de mudança, apresenta no início da sua carreira obras de carácter irónico e sarcástico que expunham temas sócio-políticos de forte crítica à sociedade da época. No entanto, a ambiguidade nem sempre foi bem recebida e algumas das suas obras foram censuradas e proibidas de serem exibidas. Como sucedeu com Sobre o Consumo da Pílula, obra apresentada e premiada no IV Salão de Arte Moderna de Luanda em 1970, é produzida quando o artista tinha apenas dezanove anos – uma obra com fortes influências do movimento da Pop Art e da Banda Desenhada que foi proibida pelo Movimento Nacional Feminino que pressionou o governador-geral da colónia a proibir a sua exibição, por retratar o Papa Paulo VI (1897–1978) a tomar a pílula (obra número 8 em exposição). Do mesmo modo, o documentário de longa-metragem sobre o grupo musical envolvido na luta clandestina anti-colonial O Ritmo do N’Gola Ritmos (1978) ficou “suspenso” durante onze anos, porque nele se referia o papel de Liceu Vieira Dias, um simpatizante da ‘Revolta Activa’ do MPLA. No entanto, e apesar de Ole assumir numa entrevista no Zimbabué com Barbara Murray que a sua obra nos anos 70 tinha um caráter mais político, ele expressamente recusa-se a enveredar pela política na arte4. António Ole sempre se fez aprimorar pela sua integridade e necessidade de chamar a liberdade a si, rejeitando cargos políticos ou benefícios de quaisquer regimes ou caciques. É assim um humanista, independente de que a sua obra é testemunha.

A indagação e… o lixo vai?! que dá o título a esta sua exposição individual na galeria .insofar, denuncia exatamente esta liberdade criativa. Se, por um lado, se alude a uma das expressões que recorrentemente ouvia das pessoas que perplexas o observavam a recolher “lixo” ou a criar obras apartir dele; por outro lado, refere-se à multiplicidade de materiais descartados pela cidade, que usa, como chapas de ferro usadas e enferrujadas, ossos, conchas, salitre, terra encarnada, madeiras devoradas por vermes e até mesmo pedaços de tintas descascadas das paredes – utilizadas como materiais “metafóricos” que abordam temas sobre memórias reais da guerra, pobreza, escravatura, destruição, que são a luta diária do povo angolano que sempre centrou a sua prática5, como é perceptível nesta exposição.

Faço referência a (un)Discardable Memories, desenvolvida durante o período do projeto Hidden Pages, Stolen Bodies em que se debruça sobre o tema da escravatura e do trabalho forçado associado à violência colonial que transforma os corpos dos sujeitos escravizados num bem vendável: são vidas e corpos roubados6. Uma instalação composta por sacos de serapilheira usados e uma linha de esculturas, feitas por pratos de metal corroídos pela ferrugem que se sustentam periclitantemente como troféus numa prateleira de madeira. Estimulando um repensar do tempo através de um olhar inverso, metaforicamente aludindo à longa e precária história dos angolanos, impotentes de reivindicarem as suas liberdades. Já o Mural do Maculusso que tira o nome do seu bairro na cidade de Luanda, que surge como um musseque durante período da colonização portuguesa e que hoje é um dos epicentros da cidade. Um lugar que, tal como a obra, aglomera as marcas do tempo, numa espécie de patchwork das suas diferentes fases artísticas – em que, num reciclar, sobrepor e rebuscar, surge uma enorme colagem (composta por tecidos, recortes de jornais, revistas e cartazes, fotografias da cidade até mesmo referências a obras suas anteriores, como o retrato a preto e branco de uma mulher na sua série Mens Momentanea (I) de 1973).

Nesta espécie de cartografia dos lugares que habita e que o influenciam a comunicar os seus pensamentos no tempo e no espaço, Ole, põe “as coisas umas contra as outras” construindo paulatinamente um arquivo sócio-cultural de interligações inigualável. A título de exemplo, no tríptico Urban Choices II, capta cenas do quotidiano em Luanda, no Mercado de S. Paulo, onde se refere à vida numa cidade africana contemporânea, representada por objetos de rituais urbanos e religiosos empilhados em torre ou categoricamente alinhados numa miscigenação de díspares objectos utilitários por cor, forma ou função, como encontrarmos na banca de um mercado informal. Num outro mercado também em Luanda, adquire uma escultura tradicional de madeira com que cria a obra o Corpo Fechado – que Ana Balona Oliveira descreve como uma escultura que transporta a invocação protectora para a contemporaneidade, fechando-se às energias da guerra, da doença, da cobiça, da inveja, da corrupção e do mau olhado7, evidenciando tanto a sua sensibilidade espiritual como conhecimento etnográfico e tradicional da cultura angolana e africana.

O seu gosto pelas realidades marginais e marginalizadas, pelos restos de uma sociedade em construção (…) atiram-no para o retrato de um estudo dos heróis de um quotidiano esquecido, para o mapeamento de construções inverosímeis, para o indagar de um sofrimento coletivo tantas vezes silenciado em nome de um apagamento da memória como catarse possível8, como Miguel von Hafe Perez, o caracteriza . Assim, dentro da sua vasta e eclética obra – pintura, escultura, colagem, desenho, instalação, fotografia e cinema – aquela que António Ole considera como uma das suas obras de arte mais importantes, uma vez que se trata de um símbolo do seu desenvolvimento artístico, combinando objectos encontrados e cores brilhantes, num estilo pop art9 é a série das township walls, desenvolvida entre 1994 e 2004. Uma série, constituída por várias instalações, onde se debruça sobre a arquitetura e a vivência nos musseques de Luanda – esses bairros da lata africanos transbordantes de gente e vitalidade na periferia da cidade do cimento tão caros a António Ole10, como descreve José Fernandes Dias em 1995. Nesta exposição foi incluída a emblemática – Township Wall X, concebida para a exposição itinerante Africa Remix – Contemporary Art of a Continent (2004) com curadoria de Simon Njami (11), e que posteriormente foi incluída na sua retrospectiva António Ole: Luanda, Los Angeles, Lisboa (2016) na Fundação Calouste Gulbenkian, com co-curadoria de Isabel Carlos e Rita Fabiana.

Hoje, prolonga-se por mais de nove metros numa das paredes da .insofar.

Esta presença de paredes ou vestígios destas, é também incorporada noutras séries, como quando poeticamente trabalha com as cascas de tinta que revestiam os edifícios em Luanda. Tal como sucede na obra Quick drawing III onde lembro as palavras de Delfim Sardo: paredes que são peles que guardam nas suas rugas a memória de tudo o que acontece a uma cidade12. Estas peles que se prolongam na poética da arqueologia urbana, levam-nos para cada pormenor revelado na sua obra que se apropria do quotidiano pessoal e coletivo.

A pintura Desintegrações I é um também um forte exemplo. Produzida nos fim da Guerra Civil em Angola e acarretando as memórias de um dos edifícios mais emblemáticos da cultura da sua cidade – o Teatro Elinga, um edifício que mais simboliza um modo de ser e de estar em Luanda… paredes [onde] se respira o tempo13 reflete Marta Lança, numa das inúmeras ameaças de destruição deste monumento nacional. Assim, através da reutilização de um toldo de publicidade exterior deste teatro, que aos pedaços caía de degradado, António Ole, cria uma obra onde corta, pinta e transforma a memória do tempo, e que, como num presságio, anuncia o fim ou início de uma era.

Não só de cidade vive a obra de António Ole. O mar, a água, o campo, a terra e o imatérico, também lhe vagueiam na alma. Caminhando com frequência pelos areais da ilha de Mussulo, onde recolhe objetos que o oceano lhe presenteava, deixando-se imbuir nas vastas paisagens de horizontes luminosos. As pinturas A Ténue Luz do Ouro e O Poder da Água e das Partículas Sensíveis separadas por trinta anos, poderiam de alguma forma interligar-se, através da liquidez das suas formas que compõem cenários oníricos. Enquanto que a primeira nos transporta para um mundo espiritual, mitológico ou ancestral, onde figuras humanóides e animais esvoaçam pelas transparências da luz. Na segunda, num painel de cinquenta aguarelas, afiguram-se paisagens de céus e mares. Talvez memórias líquidas das inúmeras viagens que fez entre as ilhas de África: Ilha de Mussulo, Cabo Verde, Gorée, São Tomé, Robben Island, Ilha de Moçambique, Zanzibar, Lamu e Reunião. Obras que testemunham o seu interesse pessoal pela
espiritualidade, em assuntos profundos e que lentamente estão a desvanecer-se das sociedades africanas, especialmente nos centros urbanos onde a violência de influências externas, tece outros valores.

Numa outra obra desta exposição, Ole, aborda problemáticas ambientais e económicas atuais, usando elementos do mundo natural para nos alertar sobre perdas irreparáveis em prol de um progresso económico. Refiro-me ao Boi Sagrado I – à memória de Ruy Duarte de Carvalho, uma obra que incorpora múltiplos significados. Tomando como base a memória do filme Ondyelwa: Festa do Boi Sagrado (1978) realizado pelo seu grande amigo antropólogo, que capta no seu documentário a procissão do boi sagrado – um ritual praticado entre os Nyaneka-Humbe.

Se por um lado António Ole nos alerta para as alterações climáticas que se têm vindo a agravar criando ciclos de seca mais prolongados14 e com consequências drásticas para todo o ecossistema, com a secagem de rios, extinção de vida selvagem, migrações forçadas, perda de biodiversidade ou mesmo a erosão dos solos, apontando o caso particular no Namibe, em que, apesar do governo angolano em 2016 ter adoptado medidas para mitigar os efeitos da seca, mais de um milhão de angolanos continuam a ser afectados e se ainda associarmos estes factos a uma exploração petrolífera a expandir-se pelo território numa economia atípica, como é a de Angola onde o petróleo representa 70% da sua receita15, por outro lado, o artista, desafia-nos a uma reflexão sobre as economias alternativas para o seu país, nomeadamente através da agricultura e criação bovina, como forma simultânea de perpetuar não só o ecossistema natural, mas também valorizar a identidade, sabedoria, cultura e independência económica local.

Talvez a cabeça de boi revestida a folha de ouro, que nos olha do topo da cartografia do rio Cunene no Namibe, nos faça ponderar sobre o equilíbrio entre tradição e progresso.

Por fim, a vitrina.
Uma arqueologia de memórias nunca apresentadas publicamente, do longo e eclético percurso de António Ole num desvendar simples de objetos impregnados de histórias, documentos preambulares, cadernos de bolso preenchidos por desenhos e pensamentos, esquiços de telas sobre papel vegetal, a sua máquina de escrever Oliva 2002, guiões de filmes, películas e bobinas de áudio, o seu avental de atelier impregnados com grossas camadas de tinta, bem como, diversos recortes de jornais com críticas e entrevistas, fotografias antigas do anos em que viajou a documentar o seu país que foram, categoricamente guardadas. Estas fotografias captadas por António Ole, são registos das cenas de gravação dos seus quatro filmes emblemáticos – Conceição Tchiambula, um dia, uma vida (1982); O Ritmo do N’Gola Ritmos (1970); O Caminho das Estrelas (1980) e o Carnaval da Vitória (1978), período em que também trabalhou para a TPA (Televisão Popular Angolana) a documentar o país. Na opinião de António Ole, tal como de outros cineastas Africanos, nomeadamente Paulin S. Vieyra, que afirma que este período foi crucial, dado que a nossa história, nunca ninguém no-la ensinou na escola, conhecemo-la apenas por ouvir dizer, pelas lendas, pelos contadores, e ela é fundamental para regressarmos às origens 16 e se não filmássemos [Angola] eu acho que a memória desse período se teria perdido17. Deste modo, a importância destes filmes vai muito além de mostrar a transformação política e social do continente africano. Eles oferecem uma visão refundada do olhar estereotipado que [ainda] permanece sobre África. Tal como Wole Soyinka alerta-nos no seu livro de ensaios Myth, Literature and the African World de 1975, num mundo tão abrangente de mitos, histórias e costumes; o mundo africano, tal como qualquer outro “mundo”, é único.

Esta exposição pode contribuir para um entendimento mais amplo da obra do mestre António Ole que, profunda e provocadoramente nos estremece por dentro, de tão honesta que é.

Referências:

(1) Entrevista a Angela Davis em “Free Angela and All Political Prisoners”, documentário de Shola Lynch, 2012. (2) Erhabor Ogieva Emokpae (1934–1984) foi um artista Nigeriano reconhecido como um dos pioneiros da arte moderna na Nigéria. A sua célebre réplica de bronze da máscara de marfim da Rainha Idia serviu de símbolo oficial do Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana (FESTAC 77). Esta máscara do século XVI pertencia ao Império do Benim, que foi saqueada pelos britânicos do Palácio do Oba do Benim, durante a Expedição do Benin em 1897, atualmente encontra-se na Secção Africana do Museu Britânico. (3) Liberato, Ermelinda. “Avanços e retrocessos da educação em Angola”, Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola. Publicado na Revista Brasileira de Educação v. 19 n. 59, 2014. (4) Murray, Barbara. Revista Gallery, zimbabueana, junho, 1998. (5) Valle, Inês. “Uma calunga de esperanças sem fim – anotações sobre António Ole”, catálogo de exposição, Lisboa, 2011 (6) Fabiana, Rita.”Insula ou o corpo de obra”, catálogo de exposição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016. (7) Oliveria, Ana Balona. “As Matérias Vitais de António Ole”, catálogo da exposição na galeria Movarte, 2021. (8) Perez, Miguel von Hafe. “Entre a terra azul e o mar castanho”, catálogo de exposição, Sala 117, 2016. (9) Siegert, Nandine. “A Beleza da Arquitectura Elusiva”, crítica à exposição “Na pele da cidade”, Buala, 2010. (10) Dias, José Fernandes, catálogo de exposição, Delphina Studio, Londres, 1995. (11) A exposição itinerante “Africa Remix – Contemporary Art of a Continent” foi apresentada no Museum Kunst Palast, Düsseldorf, 2004; Haywad Gallery, Londres, 2005; Centre George Pompidou,Paris, 2005; Mori Art Museum, Tóquio, 2006; Modern Museet, Estocolmo, 2007; Johannesburg Art Gallery, 2007. (12) Sardo, Delfim. “A pele das paredes de António Ole”, catálogo da exposição “Na Pele da Cidade”, Luanda, 2008. (13) Lança, Marta. “Elinga, um património afectivo”, Rede Angola, 2014. (14) Relatório: A história das recentes secas em África (1980-2020), Universidade de Gothenburg & Jennifer Nnopuechi, 2021. (15) Angola – Panorama do Mercado, 2022. (www.trade.gov) (16) Vieyra, Paulin Soumanou ( Benin, 1925–1987), Le cinéma au Sénégal, Editions OCIC/L’Harmattan, p. 152, 1983. (17) António Ole, O Angolano de Múltiplos Talentos. (www.dw.com)

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António Ole (Angolano, 1951)

António Ole é uma das principais figuras da história dos desenvolvimentos artísticos em Angola e uma das mais ativas no panorama internacional da arte contemporânea entre os artistas africanos de língua portuguesa. O seu rico e diversificado universo visual está ligado à vívida intersecção da observação direta, da memória histórica, de referências de longo alcance e de questões contemporâneas prementes como a pobreza, a desigualdade, a migração, a corrupção e o desenvolvimento insustentável. O seu ambiente cultural e natural imediato são fontes contínuas de inspiração. Ao longo da sua obra, o artista presta frequentemente homenagem à simples beleza e criatividade espontânea que prosperam entre a população angolana e que se nota em todos os aspetos do quotidiano das pessoas. A sua inventividade multimédia vai desde cinema, vídeo e fotografia até desenhos, colagem, pintura, escultura e instalação monumental. Apesar do seu profundo compromisso em confrontar a realidade e em desencadear mudanças sociais e políticas através dos seus resultados artísticos, a obra de Ole é infundida com poesia e uma notável dimensão oneérica. Assim, o artista evoca um mundo sensível e imaginativo, que abre a porta a potenciais de ficção e estratos de perceção.

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