Nestas duas obras Marcela evoca dois fragmentos ou acontecimentos do mesmo período histórico. Num, há uma representação que se assemelha a uma premonição da ruína do Império Português no Brasil, na qual seres-mulheres “fantasmagóricos” cercam um soldado desfalecido. No outro, temos o fado inevitável do dia 2 de julho de 1823, o momento da vitória do povo baiano. Onde no primeiro plano desta pintura, as mulheres de Saubara regozijam de vitória numa clareira e ao fundo sombras negras representam soldados portugueses a fugirem por um túnel ou gruta. Estas obras carregadas de símbolos e misticismo, transportam-nos para tempos idos que se tornam cada vez mais presentes quando refletimos sobre a identidade de um povo, com a inclusão de elementos históricos e contemporâneos. Como quando, Marcela, presta homenagem a figuras históricas, ao personificar três mulheres guerreiras da história brasileira – Maria Quitéria (1792–1853), Joana Angélica (1761–1822) e Maria Felipa (?–1873) ou quando pinta um soldado “à paisana” com vestuário contemporâneo, uma t-shirt estampada com uma caravela em chamas. A caravela em chamas pode simbolizar a destruição dos navios colonizadores e exploradores que representaram o início do colonialismo, mas também uma poderosa mensagem de questionamento sobre os legados do passado ou mesmo em relação às estruturas de poder e opressão que ainda persistem na sociedade contemporânea.
Em contraponto às representações históricas, somos catapultados por Marcela Cantuária para um mundo imaginário e mágico, por meio de cores vibrantes, num espaço, onde habitam seres mutantes, bestas e monstros antropomórficos, que a artista ricamente usa para reconstruir uma narrativa complexa da história. Estes elementos fantásticos aludem ao lado mágico e imaginativo que todas as histórias de luta também carregam, adicionando uma camada de profundidade e evocando a imaginação do espectador. Destacam-se referências aos arcanos menores do tarot, que desempenham um papel significativo nas obras. Estes, que preveem destinos foram representados nos quatro cantos da pintura, trazendo uma dimensão simbólica e misteriosa à narrativa. Além disso, a presença da águia tricéfala carregando uma alma, ou mesmo, as mulheres-sardinha, com cabeças de heroínas baianas e corpos de sardinhas lusas que pairam sobre a narrativa da pintura. Referências simbólicas que adicionam camadas de significado e convidam o espectador a mergulhar em uma interpretação mais profunda da obra de Marcela, explorando os mistérios e os múltiplos sentidos que cada elemento traz consigo.
Num diálogo com estas duas obras, a artista expande o universo da história que retrata por meio outras de menor dimensão, como aguarelas e esculturas, que fundem a realidade com o mundo imaginário e natural de uma forma fluida e orgânica. Exemplo disso, é a representação do dragão de onze cabeças em chamas, em que cada uma retrata um homem que navegou, explorou ou colonizou o Brasil. Numa outra pintura surge-nos a da mulher-caracol, retratada como a guerreira e protetora que a passo ergue a sua flecha humanoide almejando a liberdade do povo, seja ele indígena, caboclo ou africano escravizado.
É fascinante pensar em como as palavras e a mensagem da grande mestra barroca italiana Artemisia Gentileschi (1593–1656), expressas na carta de 1649, podem ecoar e encontrar ressonância em tempos e lugares diferentes. Embora seja impossível afirmar com certeza se Artemisia poderia supor que suas palavras teriam um impacto duradouro em outro continente e em um período posterior, é inegável que sua luta e sua determinação deixaram uma marca na história da arte. Poderia ela supor que dois séculos passados, as suas palavras ecoassem ou marcassem a profunda mensagem que nos trás agora Marcela Cantuária?
O espaço expositivo, pontuado por estas obras, é também um reino onírico – um palácio do século XVIII encomendado por D. Pedro de Bragança, o primeiro duque de Lafões e descendente ilegítimo do rei D. Pedro II, que após lhe ser negado o trono, contrata os artistas mais proeminentes da época para criarem um lugar que permitisse à alma o voo que mais lhe conviesse. Assim, no Palácio do Grilo, é possível testemunhar simultaneamente os sonhos de um homem renegado e a visão de uma mulher inconformada. Essa dualidade de perspectivas proporciona-nos uma experiência performativa que transcende fronteiras transatlânticas, conectando diferentes universos e narrativas, fazendo de algum modo, jus à ambição de Julien Labrousse, o atual proprietário do palácio.
Por fim, a obra “Serpentária” é uma obra marcante da exposição. Trata-se de um oratório habitado por uma quimera, uma figura híbrida que combina características de mulher, serpente e loba. Esta figura pode ser interpretada como um oráculo, uma entidade que detém conhecimento e sabedoria transcendental. O santuário-museu, onde esta quimera vive, é um espaço sagrado, que ostenta um espelho que reflete e multiplica tanto a presença da quimera, como as inúmeras micro-pinturas de seres metamórficos que adornam-no, criando um ambiente místico. Simultaneamente, ao abrir-nos as portas do seu santuário, somos convidados a para um mundo de transformação e autodescoberta, onde esta torna-se uma guia para explorarmos os temas centrais da exposição: luta, liberdade e independência.