Bestiário

Bestiário

síntese

21-05 a 24-06-2023

“Bestiário”
Marcela Cantuária
Assistentes de produção da artista: André Ebert | Carolina Carvalho | Isabella Ôgeda

curadoria de Inês Valle
Local: Palácio do Grilo

 

Temos o prazer de anunciar Marcela Cantuária: Bestiário, a primeira exposição individual da artista em Portugal, que apresenta obras concebidas recentemente. A exposição Bestiário, que conta com a curadoria da nossa directora artística, estará patente na nossa galeria até ao dia 24 de Junho de 2023.

A sua pintura é caracterizada por cores vibrantes e pinceladas arrojadas, entrelaça imagens históricas do mundo político com representações da cultura visual contemporânea. Uma obra que desvenda narrativas alternativas às de uma sociedade estruturada no machismo e na misoginia, ao propor a construção de vocabulários alternativos que refletem a sua extensa investigação sobre as lutas das mulheres no mundo. Na busca pela liberdade, a sua obra procura questionar o lugar da mulher na sociedade, a luta de classes, a divisão de poderes, estereótipos de género e as disputas de significados políticos.  A sua obra está representada em várias coleções, incluindo Pérez Art Museum Miami (EUA), Museu de Arte de São Paulo (BR), Assis Chateaubriand MAC-PE (BR), Pinacoteca do Estado de São Paulo (BR), Museu da Maré, RJ (BR). Uma colaboração com a galeria A Gentil Carioca (BR).

ensaio

Do Susto à Independência
texto por Inês Valle

Temos plena consciência de que a narrativa histórica oficial negligenciou certos episódios que inflamaram o espírito de liberdade. Ao longo dos tempos, a história da humanidade foi amplamente moldada por conceitos eurocentricos, como o humanismo, o colonialismo e o racismo, resultando na marginalização e supressão do conhecimento tradicional, local e indígena. Nesta era antropocêntrica em que vivemos, tais conceitos assombram-nos de forma contundente, instigando, assim, a necessidade inescapável de recontar a história com valores e saberes mais amplos. Neste contexto, Marcela Cantuária, ao resgatar e dar voz a histórias marginalizadas, contribui para a construção de um cenário mais inclusivo e diverso, expandindo o alcance da arte como uma forma de resistência e transformação social. A sua obra é fundamental para promover a conscientização e estimular a reflexão sobre as narrativas historicamente silenciadas, permitindo que novas perspectivas e experiências sejam compartilhadas e valorizadas.

Nesta sua primeira exposição em Portugal, intitulada “Bestiário”, a artista conduz-nos a uma imersão na história e nas tradições da Bahia, revelando a notável jornada das mulheres que enfrentaram desafios e adversidades com coragem e determinação. Ao explorar as narrativas das mulheres baianas, ela apresenta-nos um retrato vívido de sua resiliência, destacando o papel fundamental que desempenharam na independência do Brasil. Presenteando-nos com uma mescla de universos que nos fazem deambular por entre mundos fantásticos e corrosivos, duros mas reais. A artista, traz a Portugal histórias do Brasil, histórias de mulheres que pelejaram pela liberdade – partilhando nas pinturas de maior escala desta exposição, a história da irmandade das mulheres de Saubara, conhecidas hoje como Caretas do Mingau, que combateram pela independência da Bahia no século XIX. Estas mulheres, envoltas pelo manto da noite, percorreram heroicamente as ruas e os caminhos da mata, carregando alimentos e armas até seus filhos e maridos na frente de luta. Cobertas por longos mantos brancos, carregavam panelas cheias de mingau sobre suas cabeças, entoando gemidos estridentes e perturbadores. Como almas penadas, vagueavam no breu das sombras, amedrontando as tropas lusitanas até a sua retirada.

Nestas duas obras Marcela evoca dois fragmentos ou acontecimentos do mesmo período histórico. Num, há uma representação que se assemelha a uma premonição da ruína do Império Português no Brasil, na qual seres-mulheres “fantasmagóricos” cercam um soldado desfalecido. No outro, temos o fado inevitável do dia 2 de julho de 1823, o momento da vitória do povo baiano. Onde no primeiro plano desta pintura, as mulheres de Saubara regozijam de vitória numa clareira e ao fundo sombras negras representam soldados portugueses a fugirem por um túnel ou gruta. Estas obras carregadas de símbolos e misticismo, transportam-nos para tempos idos que se tornam cada vez mais presentes quando refletimos sobre a identidade de um povo, com a inclusão de elementos históricos e contemporâneos. Como quando, Marcela, presta homenagem a figuras históricas, ao personificar três mulheres guerreiras da história brasileira – Maria Quitéria (1792–1853), Joana Angélica (1761–1822) e Maria Felipa (?–1873) ou quando pinta um soldado “à paisana” com vestuário contemporâneo, uma t-shirt estampada com uma caravela em chamas. A caravela em chamas pode simbolizar a destruição dos navios colonizadores e exploradores que representaram o início do colonialismo, mas também uma poderosa mensagem de questionamento sobre os legados do passado ou mesmo em relação às estruturas de poder e opressão que ainda persistem na sociedade contemporânea.

Em contraponto às representações históricas, somos catapultados por Marcela Cantuária para um mundo imaginário e mágico, por meio de cores vibrantes, num espaço, onde habitam seres mutantes, bestas e monstros antropomórficos, que a artista ricamente usa para reconstruir uma narrativa complexa da história. Estes elementos fantásticos aludem ao lado mágico e imaginativo que todas as histórias de luta também carregam, adicionando uma camada de profundidade e evocando a imaginação do espectador. Destacam-se referências aos arcanos menores do tarot, que desempenham um papel significativo nas obras. Estes, que preveem destinos foram representados nos quatro cantos da pintura, trazendo uma dimensão simbólica e misteriosa à narrativa. Além disso, a presença da águia tricéfala carregando uma alma, ou mesmo, as mulheres-sardinha, com cabeças de heroínas baianas e corpos de sardinhas lusas que pairam sobre a narrativa da pintura. Referências simbólicas que adicionam camadas de significado e convidam o espectador a mergulhar em uma interpretação mais profunda da obra de Marcela, explorando os mistérios e os múltiplos sentidos que cada elemento traz consigo. 

Num diálogo com estas duas obras, a artista expande o universo da história que retrata por meio outras de menor dimensão, como aguarelas e esculturas, que fundem a realidade com o mundo imaginário e natural de uma forma fluida e orgânica. Exemplo disso, é a representação do dragão de onze cabeças em chamas, em que cada uma retrata um homem que navegou, explorou ou colonizou o Brasil. Numa outra pintura surge-nos a da mulher-caracol, retratada como a guerreira e protetora que a passo ergue a sua flecha humanoide almejando a liberdade do povo, seja ele indígena, caboclo ou africano escravizado.

É fascinante pensar em como as palavras e a mensagem da grande mestra barroca italiana Artemisia Gentileschi (1593–1656), expressas na carta de 1649, podem ecoar e encontrar ressonância em tempos e lugares diferentes. Embora seja impossível afirmar com certeza se Artemisia poderia supor que suas palavras teriam um impacto duradouro em outro continente e em um período posterior, é inegável que sua luta e sua determinação deixaram uma marca na história da arte. Poderia ela supor que dois séculos passados, as suas palavras ecoassem ou marcassem a profunda mensagem que nos trás agora Marcela Cantuária?

O espaço expositivo, pontuado por estas obras, é também um reino onírico – um palácio do século XVIII encomendado por D. Pedro de Bragança, o primeiro duque de Lafões e descendente ilegítimo do rei D. Pedro II, que após lhe ser negado o trono, contrata os artistas mais proeminentes da época para criarem um lugar que permitisse à alma o voo que mais lhe conviesse. Assim, no Palácio do Grilo, é possível testemunhar simultaneamente os sonhos de um homem renegado e a visão de uma mulher inconformada. Essa dualidade de perspectivas proporciona-nos uma experiência performativa que transcende fronteiras transatlânticas, conectando diferentes universos e narrativas, fazendo de algum modo, jus à ambição de Julien Labrousse, o atual proprietário do palácio.

Por fim, a obra “Serpentária”  é uma obra marcante da exposição. Trata-se de um oratório habitado por uma quimera, uma figura híbrida que combina características de mulher, serpente e loba. Esta figura pode ser interpretada como um oráculo, uma entidade que detém conhecimento e sabedoria transcendental. O santuário-museu, onde esta quimera vive, é um espaço sagrado, que ostenta um espelho que reflete e multiplica tanto a presença da quimera, como as inúmeras micro-pinturas de seres metamórficos que adornam-no, criando um ambiente místico. Simultaneamente, ao abrir-nos as portas do seu santuário, somos convidados a para um mundo de transformação e autodescoberta, onde esta torna-se uma guia para explorarmos os temas centrais da exposição: luta, liberdade e independência.

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sobre a artista

Marcela Cantuária (b. 1991, Brasil)

Marcela Cantuária vive e trabalha no Rio de Janeiro, é licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sua pintura revolucionária, caracterizada por cores vibrantes e pinceladas arrojadas, entrelaça imagens históricas do mundo político com representações da cultura visual contemporânea. Uma obra que desvenda narrativas alternativas às de uma sociedade estruturada no machismo e na misoginia, ao propor a construção de vocabulários alternativos que refletem a sua extensa investigação sobre as lutas das mulheres no mundo. Na busca pela liberdade, a sua obra procura questionar o lugar da mulher na sociedade, a luta de classes, a divisão de poderes, estereótipos de género e as disputas de significados políticos.

Tem apresentado os seus projetos em inúmeras exposições individuais e colectivas, das quais destacamos: The South American Dream no Pérez Art Museum (2023, EUA); Propostas de Reencantamento no Sesc Pompeia, (2022, BR); La invocación del pasado a la velocidad del ahora no Centro Centro (ES), La larga noche de los 500 años, A Gentil Carioca (2019, Brasil); Sutur|ar Libert|ar, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica(2019, BR); Histórias brasileiras no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP,2022, Brasil); 8th Biennial of Painting: The ‘t’ is Silent no Museum Dhondt-Dhaenens (2022, Bélgica); Atos de Revolta: outros imaginários sobre independência no Museu de Arte Moderna do RJ (2022, Brasil); Essa minha letra: Lima Barreto e os Modernismos Negros no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB,  Brasil); Espelho Labirinto no Museu de Arte do Rio (MAR, Brasil); Crônicas Cariocas no Museu de Arte do Rio (MAR,  Brasil, 2021) e Histórias Feministas: artistas depois de 2000 no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP (Brasil, 2019) entre outras. Actualmente é representada pela galeria brasileira A Gentil Carioca (BR).

A obra de Marcela Cantuária está representada em várias coleções, nomeadamente Pérez Art Museum Miami (EUA), Museu de Arte de São Paulo (BR), Assis Chateaubriand MAC-PE (BR), Pinacoteca do Estado de São Paulo (BR), Museu da Maré, RJ (BR).

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